Programa Saber Direito Reforma da Previdência

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REFORMA DA PREVIDÊNCIA: Remédio Amargo, mas Necessário.

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Nesta semana a Reforma da Previdência entrará na pauta da Câmara dos Deputados. De um lado a oposição se utilizará de mecanismos para obstruir e para procrastinar o andamento da Proposta de Emenda Constitucional. De outro lado, a situação terá muito trabalho para acelerar o processo legislativo e não correr o risco de cair na tentação de apresentar destaques e de tentar promover alguma alteração no texto aprovado pela Comissão Especial.

A tendência é que tenhamos a PEC 6 aprovada com grande margem de votos e antes do início do recesso parlamentar, previsto para 18/07.

Ao mesmo tempo que o tema chega na reta final de tramitação, a imprensa divulga várias pesquisas de opinião que indicam grande aceitação da Nova Previdência pela população, pelo mercado financeiro, pelos empresários e pela sociedade em geral.

Todos os fatos confluem para a aprovação do texto. Não sobram dúvidas sobre a sua necessidade e importância.

Podemos discordar da dose, mas todos sabemos que o remédio é necessário, diria mais, imprescindível.

O Quarto Pilar da Nova Previdência

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A Nova Previdência está calcada em três pilares: 1. Idade mínima e tempo de contribuição; 2. Redução da Fraudes, e 3. Recrudescimento das Medidas para Execução de Devedores.

Mas falta atacar os Conflitos Previdenciários, que colocam no ralo mais de R$ 4,7 Bilhões ano.

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Segundo o Levantamento de Auditoria do Tribunal de Contas da União, foram gastos pelas estruturas do Poder Judiciário, da Advocacia Geral da União, da Defensoria Pública da União e do próprio INSS R$ 4,7 bilhões no ano de 2016 para se lidar com os processos previdenciários judicializados.

Dentre os órgãos listados, a Justiça Federal, principalmente os Juizados Especiais Federais, e a AGU, essencialmente a Procuradoria Geral Federal Especializado do INSS, responderam por 82% do total das despesas, equivalentes à R$ 3,9 bilhões.

Do total de 34,3 milhões de benefícios mantidos pelo INSS, mais de 11%, algo em torno de 3,8 milhões, foram concedidos por meio de decisões judiciais, representando, aproximadamente R$ 92 bilhões em pagamentos concedidos ou reativados com a intervenção do Poder Judiciário. (15,1% do montante de benefícios concedidos pelo INSS).

No momento em que os Direitos Sociais e da Seguridade Social estão na pauta política nacional, Washington Barbosa lança seu novo livro, onde analisa a judicialização das questões previdenciárias no Brasil e traça propostas para incrementar as esferas administrativas a fim de torná-las um espaço real para solução célere e eficiente de conflitos.

No livro CONFLITOS PREVIDENCIÁRIOS – Medidas Extrajudiciais e Administrativas se poderá compreender que a utilização do Tribunal Administrativo Previdenciário não viola os princípios da Separação de Poderes e da Inafastabilidade de Jurisdição e mostra-se menos oneroso, ágil e alinhado aos princípios atuais do Processo Civil e à Política Judiciária Nacional.

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As medidas propostas poderão proporcionar uma redução anual da ordem de R$ 26,10 bilhões, representando verdadeiro Quarto Pilar para a Nova Previdência.

A solução dos conflitos previdenciários no Brasil está na utilização da esfera administrativa e extrajudicial, pois a visão de acesso à justiça não significa, necessariamente, a utilização de órgãos formais da estrutura do Judiciário, mas sim possibilitar a prestação da ordem jurídica justa.

Para entender um pouco mais o debate proposto, veja aqui o programa Academia da TV Justiça.

Washington Luís Batista Barbosa

Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Especialista em Direito Público e em Direito do Trabalho. MBA Marketing e MBA Formação para Altos Executivos. Diretor Acadêmico do Instituto DIA – Duc In Altum – de Capacitação Estratégica, Diretor de Estudos em Direito do Trabalho da Rede Internacional de Excelência Jurídica – RIEX, Professor titular das disciplinas nas áreas de Direito Empresarial, Direito Econômico e Direito Previdenciário nos cursos de Pós-graduação e LL.M, Master of Laws. Desempenhou várias funções na carreira pública e privada, entre as quais: Assessoria Jurídica da Diretoria-Geral e Assessoria Técnica da Secretaria-Geral da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, Diretor Fiscal da Procuradoria-Geral do Governo do Distrito Federal, Coordenador dos Cursos Jurídicos do IBMEC-DF, cargos de Alta Administração no Conglomerado Banco do Brasil, Conselheiro do Conselho de Recursos do Seguro Social e Diretor Jurídico da Justiça do Trabalho.

CONFLITOS PREVIDENCIÁRIOS – Medidas Extrajudiciais e Administrativas

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Olá caro(a) leitor(a),

Há quanto tempo.

Estive nos últimos anos dedicado à minha pesquisa de mestrado, por isso deixei de publicar mais intensamente no nosso Blog.

Gostaria de compartilhar contigo o resultado da pesquisa, onde trato dos Conflitos Previdenciários no Brasil e faço propostas para a sua solução de maneira ágil e menos onerosa.

Veja a apresentação que fiz sobre o tema para a TV Justiça.

Clique aqui e assista

A Revitalização da Outorga Conjugal

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A Jurisprudência Resgata

 O Princípio da Simplicidade das Formas

 do Direito Empresarial:

OUTORGA-UXÓRIA

A Relativização da exigência de outorga conjugal para prestação de aval

viabiliza as transações empresariais

 

 

 

Por

Isabel Luiza Rafael Machado dos Santos*

Washington Luís Batista Barbosa**

 

 

 

Introdução

 

O texto tratará da análise das distinções entre aval e fiança, a fim de que se compreenda a relevância da alteração legislativa advinda no Código Civil de 2002, que resolveu exigir a outorga uxória do primeiro, quando o diploma material de 1916 a reservava somente à segunda.

Por décadas a legislação brasileira não exigiu para a formação do aval qualquer outra formalidade que não a simples manifestação de vontade do avalista, reservando-se a obrigatoriedade de outorga uxória ou marital apenas aos casos de fiança.

O artigo 1647, III do Código Civil de 2002, todavia, trouxe inovação ao estender a necessidade de outorga também ao aval. Tal mudança representou grande impacto às relações comerciais e ao próprio instituto do aval que se presta, justamente, a imprimir maior eficácia e dinamicidade às transações comerciais, sem se olvidar da importante redução dos custos de operações financeiras.

O presente estudo, portanto, visa a apresentar, em um primeiro momento, um panomara sobre as principais características do instituto do aval e as suas distinções em relação à fiança, bem como as repercussões de ambos às relações comerciais e aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais urgidos com a inovação trazida pelo artigo 1647, III do Código Civil de 2002.

Traçado o paralelo entre os institutos, se debaterão os argumentos apresentados pelo Relator do Recurso Especial 1.633.399, o Em. Ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quanto do julgamento de processo no qual se manteve aval em detrimento da ausência da outroga marital exigida pela legislação civil.

O objetivo é compreender, dadas as diferenças entre fiança e aval, porque a obrigatoriedade de outorga uxória pode ser relativizada em um e não no outro, a exemplo do que defendeu o Ministro da Corte Superior no referido julgamento.

 

I – Relativização da exigência de outorga conjugal para a validadação do aval

 

1. O aval

Os títulos de crédito podem ser reforçados por garantias reais e pessoais. Especificamente dentre as garantias pessoais, existe a possibilidade de uma garantia peculiar ao direito cambiário: o aval.

Wille Duarte Costa assevera que o “aval é a declaração cambial, eventual e sucessiva, pela qual o signatário responde pelo pagamento do título de crédito[1].

Fábio Ulhôa Coelho afirma que “o aval é o ato cambiário pelo qual uma pessoa (avalista) se compromete a pagar título de crédito, nas mesmas condições que um devedor desse título (avalizado)[2].

Segundo Rubens Requião[3]:

O aval é a garantia de pagamento da letra de câmbio, dada por um terceiro ou mesmo por um de seus signatários. Em geral, quando o credor não se considera inteiramente garantido frente a determinado devedor- porque este não possui situação econômica estável ou patromônio suficiente à satisfação da dívida-, é comum a exigência de uma garantia suplementar, representada pela obrigação assumida por outra pessoa. Se o devedor é sociedade limitada, de micro, pequeno ou médio porte o credor normalmente exige que o seu sócio majoritário se comprometa pessoalmente com o pagamento da dívida. Assim, além do patrimônio da pessoa jurídica, também o do sócio garante o cumprimento da obrigação.

 

O fundamento principal do aval, portanto, é prestar uma garantia pessoal para a satisfação do crédito, constituído por título cambiário. Tal garantia é particular ao regime dos títulos de crédito, não havendo que se falar dela em outras obrigações[4].

Esta é a estrita dicção do art. 897 do Código Civil de 2002, segundo o qual o pagamento de título de crédito que contenha obrigação de pagar soma determinada pode ser garantido por aval, sendo vedado o aval parcial.

Duas são as principais características do aval, no que concerne à obrigação avalizada: a autonomia e a equivalência. Segundo o princípio da autonomia, a obrigação do avalista é diferente e independente da obrigação do avalizado. Sobre as consequências da autonomia do aval, ponderou Fábio Ulhoa[5]:

 

Em primeiro lugar, a sua existência, validade e eficácia não estão condicionadas à da obrigação avalizada. Desse modo, se o credor não puder exercer, por qualquer razão, o direito contra o avalizado, isto não compromete a obrigação do avalista. Por exemplo, se o devedor em favor de quem o aval é prestado era incapaz (e não devidamente representado ou assistido no momento da assunção da obrigação cambial), ou se a assinatura dele no título foi falsificada, esses fatos não desconstituem nem alteram a extensão da obrigação do avalista. Por outro lado, eventuais direitos que beneficiam o avalizado não se estendem ao avalista. (…)  Também em decorrência da autonomia do aval, não pode o avalista, quando executado em virtude do título de crédito, valer-se  das exceções pessoais do avalizado, mas apenas as suas próprias exceções (por exemplo, pagamento parcial da letra, fatal de requisito essencial etc).

 

Assim, em breves linhas, diz-se que o aval é dotado de autonomia substancial e acessoriedade formal, de forma que quem lança sua assinatura em um título na qualidade de avalista vincula-se diretamente ao credor, independente da obrigação a que avalizou. A consequência é que, mesmo que a obrigação principal seja nula, o aval é válido e deve ser honrado por quem avalizou[6].

A equivalência em relação à obrigação avalizada, por sua vez, significa que o avalista é devedor do título da mesma forma que a pessoa por ele avalizada[7]. Sobre o tema, esclarece Fábio Ulhoa[8]:

Note-se que da definição legal da equivalência não decorre a absoluta identidade de condições entre a obrigação do avalista e do avalizado, sendo que comprometeria o caráter autônomo dos atos cambiais correspondentes. Quando a lei preceitua que são iguais as ‘maneiras’ de o avalista e do avalizado responderem pelo título, ela apenas estabelece uma posição na cadeia de regresso. Ou seja, todos os que podem exercer o seu direito de crédito contra determinado devedor do título também podem fazê-lo contra o avalista dele; assim como todos os que podem ser acionados por determinado devedor, em regresso, também o podem ser pelo respectivo avalista. Da equivalência decorrem unicamente definições de anterioridade ou posterioridade, na cadeia de regresso, e nunca efeitos incompatíveis com o princípio da autonomia das obrigações cambiais. Se o avalista é devedor equiparado ao avalizado, isso não quer dizer que suas respectivas obrigações perderam a independência característica dos atos cambiários.

 

Elucida-se que a equiparação do aval à obrigação avalizada não se aplica à extensão da obrigação, ou seja, o avalista pode ser obrigado perante o credor do título por montante superior àquele que, em regresso, recuperará junto ao avalizado. Fábio Ulhoa exemplifica[9]:

 

É, por exemplo, a situação em que se encontra o avalista de empresário beneficiado com a recuperação judicial. De fato, se o avalizado obtém, de acordo com o plano de recuperação aprovado em juízo, a remissão parcial de suas obrigações (isto é, a redução do montante das dívidas), o credor da cambial poderá executar o avalista pela integralidade do seu valor, mas esse somente poderá exercer o seu direito creditício na recuperação judicial, recebendo o pagamento pelo valor a menor.

 

2. Distinções entre aval e fiança

 

Como já dito, o aval trata-se de garantia dada em título cambiário, revestido de automonia e equivalência, em relação à obrigação avalizada.

A fiança, por sua vez, consiste em uma garantia acessória a uma obrigação contratual e não cambiária. Sendo acessória, se nula for a obrigação principal, nula será a fiança[10].

Dentre as principais distinções entre os institutos do aval e da fiança, se exulta, portanto, que o aval dá-se em um título de crédito, ou seja, decorre de um título cambiário; enquanto a fiança dá-se em um contrato, sendo obrigação acessória e subsiária.

Isto é o que menciona o Código Civil de 2002 quando estabelece em seu artigo 818 que pelo contrato de fiança uma pessoa garante satisfazer ao credor obrigação assumida pelo devedor caso este não a cumpra[11].

A subsidiariedade, resultado da própria previsão legal do artigo 818 do CC/02, significa que o credor, a princípio, somente poderá acionar o fiador caso não haja o cumprimento da obrigação pelo devedor principal, salvo se houver renúncia expressa ao benefício de ordem.

O prestador do aval, ao contrário do fiador, pode ser acionado para pagar antes do avalizado, podendo, outrossim, ocorrer a excussão prévia ao devedor principal. Destarte, no aval, não existe subsidiariedade quanto ao pagamento da obrigação.

Acrescente-se que no aval, o avalista não pode alegar perante terceiros de boa fé exceções pessoais que teria contra o avalizado. O contrário, todavia, opera-se na fiança, em que é dado ao fiador alegar defesas pessoais contra o credor.

Ademais, na fiança, o credor, em determinada situação, pode pedir a substituição da fiança, o que não ocorre com o portador do título de crédito, que não tem direito a substituição do aval. O fiador pode estabelecer prazo de validade da fiança, o que não acontece com o avalista.

Por fim, tanto o aval quanto a fiança podem ter garantia de um único ou vários garantidores da obrigação do devedor principal[12].

Diante do exposto, pode-se aferir que, embora tenham alguma semelhança, aval e fiança possuem entre si distinções de natureza e essência.

 

3. A necessidade de outorga uxória ou marital no aval

 

O artigo 235 do Código Civil de 1916[13] constituiu norma proibitiva à prestação de fiança pelo marido sem a anuência da esposa, estando a mulher igualmente impedida de fazê-lo sem a respectiva autorização marital, por força do quanto previsto no artigo 242 do mesmo diploma legal[14].

Veja-se que no antigo Código Civil, a necessidade de outorga uxória ou marital para validade e eficária da garantia somente era exigida à fiança porque, por obviedade, não se mostrava razoável ao legislador – como ainda não se parece – a inserção de tal exigência a uma garantia prestada em título cambiário, revestida de automia e equivalência, como no caso do aval.

Ora, o fundamento para prestação de garantia pessoal no direito cambiário é conferir maior segurança ao credor de boa-fé.

Inobstante os princípios do direito cambiário, prestigiando os direitos do cônjuge no campo do direito de família, inovou o legislador do Código Civil de 2002 ao exigir a outorga conjugal não apenas à fiança, como também ao aval, conforme expressa previsão do art. 1647, inciso III:

 

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

(…)

III- prestar fiança ou aval;

 

Nesta toada, pela estrita previsão legal, pessoas casadas pela comunhão universal ou pela comunhão parcial só poderão prestar aval se obtiverem a concordância dos respectivos cônjuges.

O STJ afirmou que tal restrição também se aplica ao regime da separação obrigatória, pois “ao excepcionar a necessidade de autorização conjugal para o aval, o art. 1.647 do CC/2002, mediante a expressão ‘separação absoluta’, refere-se exclusivamente ao regime de separação convencional de bens e não ao da separação legal”.[15]

Afere-se que a exigência estendida também ao aval objetivava preservar o patrimônio familiar daquele que com o ato não consentiu ou que desconhecia a obrigação assumida pelo outro cônjuge, desde que não tenha recebido em virtude do aval qualquer benefício de ordem econômica.

Nota-se que o Decreto 57.663/1966, que rege as relações cambiárias, nada dispôs quanto à exigência de autorização conjugal para validade do aval. Somente com o novo Código Civil, portanto, e a redação conferida ao art. 1.647, III, passou-se a considerar “obrigatória” a autorização conjugal para tanto.

Desde então, muito tem se questionado quanto à anulabilidade, ou não, do aval prestado na cártula que não possui vênia conjugal. Trata-se de uma condição de validade da garantia prestada?

Como todo respeito ao legislador do Código Civil de 2002, nítido equívoco houve ao estender os requisitos de validade da fiança – obrigação contratual, acessória e subsidiária – ao aval, garantia prestada exclusivamente em título cambiário, em que se elevam a autonomia e equivalência e que deve ser regido, por obviedade, pelos princípios de direito cambiário, não de família. Como já espoxto, tratando-se de garantia tipicamente cambiária, aval não se confunde com fiança.

Tal imposição, acaso interpretada de forma isolada, sem a observância dos princípios e legislação específica do direito cambiário, mostra-se incoerente com a própria essência dos títulos de crédito, que visa, como expresso alhures, em prestar dinamicidade às relações comerciais e promover a circularização do título, preservando o credor de boa-fé. Impor que a ausência de outorga do cônjuge no aval constitui a sua nulidade, tal como ocorre na fiança, apresenta-se como uma contradição fulminante à garantia pessoal prestada pelo aval na cártula[16].

Em um cotejo à legislação específica, nota-se que o aval está previsto na Convenção de Genebra, de 19 de março de 1931, à qual o Brasil livremente aderiu em 26 de agosto de 1942. Um dos objetivos traçados pelo documento foi exatamente o de elidir as dificuldades surgidas diante da diversidade de legislação nos vários países em que as letras circulam, aumentando assim a segurança e a rapidez das relações do comércio internacional[17].

A citada Convenção, em seu anexo I, estaleceu a Lei Uniforme do Cheque, que nada mencionou sobre a necessidade de outorga uxória para validade do aval. O artigo 25 da referida lei assegura que “considera-se o aval como resultando da simples aposição da assinatura do avalista”. Não exigiu a aludida legislação qualquer outro requisito à sua validade e eficácia.

O Código Civil de 1916 igualmente não previa tal condição de validade ao aval. O artigo 235 limitava à fiança, a exigência da respectiva outorga conjugal, ao que também estaria obrigada a esposa, por força do disposto no artigo 242 do mesmo codex, para validade da garantia. Restou silente tal legislação no que concerne ao aval.

Parece, pois, que interpretar a exigência de outorga conjugal como requisito à validade aval – equiparando-o à fiança – não se mostra a visão mais acertada sobre o tema, uma vez que limita ao campo do direito civil, em específico de família, a análise de instuto cambiário.

Assim, aplicando-se uma exegese conjugada da proteção ao patrimônio familiar pretendida pela inoção trazida no Código Civil em vigor e da legislação específica cambiária, o entendimento mais coerente é o de que a falta de autorização conjugal para prestar o aval não pode ensejar a nulidade da garantia. Neste viés, da ausência de autorização, poderia emergir apenas a ineficácia dos seus efeitos em relação ao cônjuge que não aderiu à garantia.

Quanto ao tema, já em setembro de 2002, ou seja, mesmo antes da entrada em vigor do novo Código Civil, após a I Jornada de Direito Civil, magistrados e estudiosos encaminharam ao Conselho de Justiça Federal proposta de alteração legislativa denotando a já antevista preocupação dos juristas quanto à afronta do art. 1.647, III, à Lei Uniforme de Genebra[18]:

Aval. Anuência. Proposta de alteração legislativa (CC1647 III). Jornada I. STJ 132. Proposta: suprimir as expressões “ou aval”, do inciso III do art. 1647do novo Código Civil. Justificativa: Exigir anuência do cônjuge para a outorga de aval é afrontar a Lei Uniforme de Genebra e descaracterizar o instituto. Ademais, a celeridade indispensável para a circulação dos títulos de crédito é incompatível com essa exigência, pois não se pode esperar que, na celebração de um negócio corriqueiro, lastreado em cambial ou duplicata, seja necessário, para a obtenção de um aval, ir à busca do cônjuge e da certidão de seu casamento, determinadora do respectivo regime de bens. (grifo reproduzido)

 

Com tais considerações, o Conselho de Justiça Federal aprovou o Enunciado nº 114, apresentando a melhor interpretação conferida pelos magistrados ao art. 1.647, III do Código Civil de 2002, o qual restou assim sedimentado:

O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu.

 

Conclui-se que, em cotejo às normas específicas e princípios de direito empresarial, a interpretação que não afasta a validade da garantia prestada por aval nos títulos cambiários, nos casos de inexistência de vênia conjugal, é mais moderada e preservativa das relações cambiárias, respeitando, ainda, a intenção do legislador no que tange à proteção do patrimônio familiar.

Por esta interpretação, a ausência de outorga conjugal no aval não ensejaria a invalidade da garantia prestada, como consta expressamente do art. 1.649 do CC; mas, tão somente a mera ineficácia do título em relação ao cônjuge que não consentiu ou desconhia a obrigação prestada pelo outro cônjuge.

Nas palavras de Paulo Teixeira, tal conclusão mostra-se “pertinente apesar de contra legem -, uma vez que a solução de invalidade entra em colisão com o princípio de plena circulação dos títulos de crédito” [19].

Ainda assim, caso comprovado pelo credor que o cônjuge ausente alcançou com o aval prestado algum benefício econômico, mesmo que indireto, nem mesmo a meação em questão estaria protegida. Tal conclusão apenas privilegia os princípios gerais do direito, amplamente assegurados na legislação pátria, tais como o da boa-fé objetiva, da vedação do comportamento contraditório e da proibição do enriquecimento sem causa.

 

4. Do entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema

 

Nos casos concretos, durante anos o Superior Tribunal de Justiça caminhou no sentido de atender estritamente ao comando legal do Código Civil para considerar nulo o aval prestado sem o consentimento do cônjuge. Em reiteradas decisões, portanto, o STJ, amparado unicamente pelos princípios do direito de família, afastou a validade da garantia prestada ao título de crédito, olvidando, no entanto, de avaliar a questão pelo prisma cambiário. É o que se infere das ementas transcritas abaixo, a título ilustrativo:

 

RECURSO ESPECIAL – AÇÃO ANULATÓRIA DE AVAL – OUTORGA CONJUGAL PARA CÔNJUGES CASADOS SOB O REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS – NECESSIDADE – RECURSO PROVIDO.

  1. É necessária a vênia conjugal para a prestação de aval por pessoa casada sob o regime da separação obrigatória de bens, à luz do artigo 1647, III, do Código Civil.
  2. A exigência de outorga uxória ou marital para os negócios jurídicos de (presumidamente) maior expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código Civil (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão patrimonial, tendo em vista que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do casamento.
  3. Nas hipóteses de casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por força da Súmula n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos onerosamente ao longo do casamento, razão por que é de rigor garantir-lhes o mecanismo de controle de outorga uxória/marital para os negócios jurídicos previstos no artigo 1647 da lei civil.
  4. Recurso especial provido.

(REsp 1163074/PB, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 04/02/2010)

 

 

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL – AÇÃO ANULATÓRIA DE AVAL – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM DE ANULAR O AVAL PRESTADO SEM O CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE – INSURGÊNCIA RECURSAL DA RÉ.

  1. Nos termos do artigo 1.647, inciso III, do Código Civil, é necessária vênia conjugal para a prestação de aval por pessoa casada.
  2. Precedentes específicos desta Corte.
  3. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no REsp 1.082.052/RS, Relator Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 19/09/2013, DJe 27/09/2013)

 

 

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. AVAL SEM OUTORGA UXÓRIA. INVALIDADE.

  1. O aval prestado sem a devida outorga uxória não possui validade. Sua anulação não tem como consequência preservar somente a meação, mas torna insubsistente toda a garantia. Precedentes.
  2. Agravo regimental a que se nega provimento.

(EDcl no REsp 1472896/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 06/08/2015, DJe 13/08/2015)

 

 

Não obstante, recentemente, o Ministro Luis Felipe Salomão, contrariando a reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, apreciou a matéria, tomando por fundamento também o direito cambiário. Outro não poderia ser o entendimento, senão, sob este prisma, reconhecer a validade da garantia pessoal prestada no título de crédito, mesmo que não tenha contado com a autorização do cônjuge.

Este é o objeto do Recurso Especial 1.633.399 – SP (2014/0316484-3), que tramitou perante a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, interposto por Geralda Santos Pascon em desfavor do Banco do Brasil, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do inciso III, do art. 105 da CF/88, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que afastou a alegação de nulidade do aval prestado sem anuência do cônjuge, no entanto, preservou-se a proteção da meação do imóvel penhorado, ante a inexistência de provas de que a dívida tivesse sido contraída em benefício da família.

O ato judicial que se comenta está assim sumariado:

 

DIREITO CAMBIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REVELIA. EFEITOS RELATIVOS.  AVAL. NECESSIDADE DE OUTORGA UXÓRIA OU MARITAL. DISPOSIÇÃO RESTRITA AOS TÍTULOS DE CRÉDITO INOMINADOS OU ATÍPICOS. ART. 1.647, III, DO CC/2002. INTERPRETAÇÃO QUE DEMANDA OBSERVÂNCIA À RESSALVA EXPRESSA DO ART. 903 DO CC E AO DISPOSTO NA LUG ACERCA DO AVAL.  REVISÃO DO ENTENDIMENTO DO COLEGIADO. COGITAÇÃO DE APLICAÇÃO DA REGRA NOVA PARA AVAL DADO ANTES DA VIGÊNCIA DO NOVO CC. MANIFESTA INVIABILIDADE.

  1. Os efeitos da revelia – presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor – são relativos e não conduzem, necessariamente, ao julgamento de procedência dos pedidos, devendo o juiz atentar-se para os elementos probatórios presentes nos autos, para formação de sua convicção.
  2. Diversamente do contrato acessório de fiança, o aval é ato cambiário unilateral, que propicia a salutar circulação do crédito, ao instituir, dentro da celeridade necessária  às  operações  a envolver  títulos  de crédito, obrigação autônoma ao avalista, em benefício   da   negociabilidade   da cártula.  Por isso,  o  aval “considera-se  como resultante da simples assinatura” do avalista no anverso  do  título  (art.  31  da  LUG), devendo corresponder a ato incondicional,  não  podendo sua eficácia ficar subordinada a evento futuro  e  incerto,  porque  dificultaria  a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua.
  3. É imprescindível proceder-se à interpretação sistemática para a correta  compreensão  do  art.  1.647,  III,  do  CC/2002, de modo a harmonizar  os  dispositivos  do  Diploma  civilista.  Nesse passo, coerente  com  o  espírito  do  Código  Civil,  em  se  tratando  da disciplina  dos títulos de crédito, o art. 903 estabelece que “salvo disposição  diversa  em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código“.
  4. No tocante aos títulos de crédito nominados, o Código Civil deve ter uma aplicação apenas subsidiária, respeitando-se as disposições especiais,  pois  o objetivo básico da regulamentação dos títulos de crédito,  no  novel  Diploma  civilista,  foi permitir a criação dos denominados  títulos  atípicos  ou  inominados,  com  a  preocupação constante  de  diferençar os títulos atípicos dos títulos de crédito tradicionais, dando aos primeiros menos vantagens.
  5. A necessidade de outorga conjugal para o aval em títulos inominados – de livre  criação  – tem razão de ser no fato de que alguns  deles não asseguram nem mesmo direitos creditícios, a par de que a possibilidade de circulação é, evidentemente, deveras mitigada. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do regime civil.
  6. As normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédulas e notas de crédito, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do Código Civil de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista. Com efeito, com o advento do Diploma civilista, passou a existir uma dualidade de regramento legal:  os  títulos  de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados  pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art.

887 do Código Civil.

  1. Recurso especial não provido. (REsp 1633399/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe 01/12/2016)

 

Tem-se, na origem, que a então recorrente, opôs embargos de terceiros em face do Banco do Brasil, nos autos de execução promovida pela instituição financeira contra uma empresa de vidraçaria e duas outras pessoas físicas, dentre elas o marido da recorrente, também avalista da cédula de crédito comercial, título este que sustentou a obrigação cambial.

Em síntese, requereu a recorrente a nulidade do aval prestado por seu marido quando ainda em vigor o Código Civil de 1916, requerendo fosse aplicada a previsão do art. 1647, inciso III do Código Civil de 2002, que impõe, em uma interpretação literal, a nulidade do aval prestado sem a outorga do cônjuge.

Superadas as questões formais (as quais não se adentrará), ao ser submetido à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, no mérito, entendeu o Ministro relator, acompanhado à unanimidade, pela manutenção do aval prestado na cártula, bem como penhora do imóvel, respeitando-se, no entanto, a parcela do imóvel equivalente à meação da cônjuge não anuente, mantendo a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, porém com outro fundamento.

A principal questão levada à aprecição do Superior Tribunal de Justiça foi: em se tratando de crédito comercial, à luz do art. 1647, III do CC/02, seria necessário ao aval a outorga conjugal?

Com maestria, o ministro relator, ao enfrentar a questão, imprimiu interpretação sistemática do Código Civil de 2002, valendo-se também da legislação específica cambiária.

Cabe a transcrição de trechos eludicidativos do voto condutor do acórdão em análise:

  1. Com efeito, diversamente do contrato acessório de fiança, o aval é apenas ato cambiário unilateral, que fomenta a extremamente salutar circulação do crédito, ao instituir, dentro da celeridade necessária às operações a envolver títulos de crédito, obrigação autônoma ao avalista, conferindo maior segurança ao credor cambial, em benefício da negociabilidade da cártula.

O aval, como qualquer obrigação cambiária, deve corresponder a ato incondicional, não podendo sua eficácia ficar subordinada a evento futuro e incerto, porque dificultaria a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua. Ademais, o aval só pode ser lançado no título, não se admitindo por documento em separado, porque o Estado brasileiro não adotou a reserva do art. 4º do Anexo II da LUG. Registra-se, ainda, que o aval pode ser prestado por terceiro, estranho à relação cartular, ou por pessoa que nela já figure com obrigação cambiária distinta, mas só pode ser lançado no título de crédito, em razão do princípio da literalidade (LUG, art. 31, al. 1ª, LC, art. 30). (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 280, 282, 283 – olhar a p. 287 e 289).

Ora, como é cediço, o título de crédito nasce para circular e não para ficar restrito à relação entre o devedor principal e seu credor originário. Daí a preocupação do legislador em proteger o terceiro adquirente de boa-fé para facilitar a circulação do título. (REsp 1.231.856/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 4/2/2016, DJe 8/3/2016)

Nesse diapasão, a doutrina anota que o elemento diferencial presente nos títulos de crédito “deve manifestar-se na proteção do cessionário do direito, terceiro de boa-fé, diante de possíveis vícios existentes nas fases de criação, emissão e circulação do documento cambial”. É que “[…] o título de crédito deve ter, em princípio, como finalidade precípua, a sua circulação, isto é, o predicado ou atributo da negociabilidade”, facilitando ao credor que detém o título “encontrar terceiros interessados em antecipar-lhe o valor da obrigação, em troca da titularidade do crédito”; “a utilidade do título de crédito reside, precisamente, nesse atributo da negociabilidade e da antecipação do seu valor. Para que o título de crédito possa ser colocado em circulação, para sua aceitação por terceiros, é necessário seja dotado de plena “certeza e segurança jurídica”. (COELHO, Fábio Ulhoa (coord.). Tratado de direito comercial: títulos de crédito, direito bancário, agronegócio e processo empresarial. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 20-24).

Luiz Emygdio F. da Rosa Junior, à luz da realidade de mercado, anota que a função do aval é reforçar as garantias de pagamento do título de crédito em seu vencimento, facilitando sua circulação, sendo um dos mais importantes e utilizados institutos do direito cambiário, mormente nas operações bancárias. (…)

Com efeito, pela própria natureza, simplicidade e finalidade do aval é que a ampla maioria da doutrina tem tecido as mais ácidas críticas à inovação trazida pelo CC/2002, inclusive anotando, em interpretação sistemática do Diploma civilista, aparente contradição interna, visto que, a teor do art. 978 do CC/2002, o empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real (TOMAZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 6 ed. São Paulo)

A princípio, o aval exigirá apenas a declaração de vontade do avalista, que poderá ser acompanhada da indicação do avalizado ou de qualquer expressão que especifique a intenção das partes. A LUG nada mais menciona no que tange às formalidades do aval. Do mesmo modo, o Decreto nº 2.044/1908 e toda a legislação estrangeira sobre o assunto. (TOMAZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 126).

 

Sobre a necessidade de celeridade para circulação do título, como forma prescípua de dar validade às relações cambiais, assim dispôs:

 

  1. Em relação ao aval em folha anexa, consiste em mero alongamento do título. E atendendo aos reclamos, notadamente do Estado francês, a LUG permitiu aos Estados aderentes fosse feita reserva específica acerca do aval – o que não é o caso do Brasil -, para que este também pudesse ser feito em folha avulsa.

Ora, se para mera formalidade (pormenor) – que em nada ou pouco afeta a celeridade, no tocante à circulação dos títulos – foi necessário, após notório e acalorado debate, estabelecer previsão específica no anexo II da Convenção, por óbvio, segundo entendo, não é mesmo possível considerar que a imposição de outorga uxória fosse compatível com a LUG.

(…)

A necessidade de outorga uxória para contrato de fiança já estava presente no Código Civil de 1916, todavia o aval é ato de extrema simplicidade, consistindo em assinatura no anverso do título de crédito ou assinatura com menção ao aval no verso do título. Por isso, a exigência de outorga uxória para a prática desse ato prejudica sua simplicidade e, consequentemente, é entrave para a rapidez e a segurança da circulação cambiária, pois o credor do título de crédito, ao contrário do que normalmente se sucede na fiança, no mais das vezes, não conhece a vida pessoal do avalista. (SILVA, Regina Beatriz Tavarez da (Coord.). Código civil comentado. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.1.609). (sem grifo no original).

 

Forte em tais considerações, concluiu o Ministro relator, pela aplicação da disposição civilista aos títulos de crédito atípicos ou inominados, devendo prevalecer as disposições da legislação específica cambiárias aos títulos típicos ou nominados, cabendo as estes últimos, a aplicação tão-somente subsidiária do Código Civil de 2002. É o que observa:

 

Assim, penso que as normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do CCB de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista.

Em outras palavras, com o advento do CC de 2002, passou a existir uma dualidade de regramento legal: os títulos de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art. 887 do CC. (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 35)

Dessarte, o regramento oferecido pelo legislador civilista restringe-se aos títulos inominados e aos que forem criados após a entrada em vigor do Código Civil, se outro não lhes for determinado pela lei especial que os disciplinar. Em reforço a esse atendimento de que o CC buscou disciplinar o aval apenas no tocante aos títulos de crédito de livre criação (inominados), cumpre ressaltar que, quanto aos únicos títulos (nominados) criados após o CC/2002 – Certificado de Depósito Agropecuário – CDA, Warrant Agropecuário – WA, Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, Letra de Crédito do Agronegócio – LCA e Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA -, a Lei n. 11.076/2004, em clara remissão à LUG (já que o CC não prevê o protesto necessário), estabeleceu, nos arts. 2º e 44, in verbis:

(…) (sem grifo no original).

 

Finalmente, em observância às normas de direito cambiário, entendeu o Ministro relator, de forma acertada, por tornar impertinente ao caso as disposições do art. 1.647, III, do CC/2002, afastando a nulidade do aval por ausência de vênia conjugal.

Conclusão

 

O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.647, III, estendeu ao aval a necessidade de outorga conjugal para sua validade, tal como previa o Código Civil de 1916 exclusivamente para a fiança.

Não obstante, a interpretação de um texto de lei jamais pode se dar por sua letra fria e de modo isolado, devendo, antes, ser analisado à luz de todo o sistema que integra. Neste contexto, á razoável afirmar que não há lugar para se admitir nulo ou sequer anulável o aval prestado por um dos cônjuges sem a respectiva outorga.

Isso porque a forma do aval exigido pelo Código Civil de 2002 (art. 898) é a mesma daquela prevista pela Convenção de Genebra e que, por força do Decreto 57.663, de 24 de janeiro de 1966, deve ser respeitada em todos os seus termos. A exigência de outorga conjugal no aval afronta a Lei Uniforme de Genebra e descaracteriza o instituto.

Não se pode olvidar que a simplicidade e celeridade necessárias à circulação dos títulos de crédito é incompatível com essa exigência, pois não se mostra crível que em toda relação cambiária na qual seja conveniente a obtenção de um aval, se considere indispensável o retardamento inevitável que trará a busca da anuência do cônjuge que, por sua vez, dependerá de uma certidão de casamento (atualizada) para determinar do respectivo regime de bens.

Conclui-se, pois, que a ausência de autorização conjugal na formalização do aval não lhe retira a validade, devendo, em casos tais, ser apenas respeitada a meação do cônjuge que não anuiu ou que desconhecia o ato praticado, ressalvada a hipótese de ter o cônjuge obtido benefício econômico, ainda que indireto.

Tal entendimento foi refletido por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.633.399/SP, da relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, julgado este que representa um marco jurisprudencial de suma importância à preservação das relações comerciais.


Referências

 

Código Civil de 2002.

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, (V. 1), 20. Ed rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

 

Convenção de Genebra de 1931, acessível em http://bo.io.gov.mo/bo/i/60/06/out04.asp.

 

Lei Uniforme de Genebra (Decreto nº 57.663/1966).

 

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, (V.2), 25. Ed rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

STJ – Resp 1.633.399/SP, Rel Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/11/2016, DJe 01/12/2016.

 

TEIXEIRA, Paulo Ricardo Goes. Aval tem validade mesmo sem a autorização do cônjuge. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-mar-10/aval_validade_mesmo_autorizacao_conjuge. Último acesso em 12/02/2017, às 16h38.

 

TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Títulos de Crédito, (V. 2), 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

 

 

 

 

* ISABEL LUÍZA RAFAEL MACHADO DOS SANTOS é Advogada especialista em tribunais superiores, direito público e gestão de riscos processuais. Advogada, consultora e Gerente Jurídica da Telebras. Pós-graduada em Direito Público e em Direito Administrativo. Atualmente, cursa LLM em Direito Empresarial pelo Ibmec.

** WASHINGTON LUÍS BATISTA BARBOSA é mestrando Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, especialista em Direito Público e em Direito do Trabalho, MBA Marketing e MBA Formação para Altos Executivos.

Coordenador dos Cursos Jurídicos do IBMEC-DF, professor titular das disciplinas nas áreas de Direito Empresarial, Direito Econômico e Direito Previdenciário nos cursos de Pós-graduação e LL.M, Master of Laws.

Desempenhou várias funções na carreira pública e privada, dentre as quais: Assessoria Jurídica da Diretoria Geral e Assessoria Técnica da Secretaria Geral da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, Diretor Fiscal da Procuradoria Geral do Governo do Distrito Federal, Cargos de Alta Administração no Conglomerado Banco do Brasil.

Editor dos blogs www.washingtonbarbosa.com, www.twitter.com/wbbarbosa, e www.facebook.com/professorwashingtonbarbosa.

Autor de vários artigos publicados em revistas especializadas.

 

 

[1] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Títulos de Crédito, (V. 2), 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 125, apud Costa, Wille Duarte. Títulos de Crédito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey.

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, (V. 1), 20. Ed rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 415.

[3] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, (V.2), 25. Ed rev.e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 432.

[4] Segundo Marlon Tomazette, apesar das características, não se pode esquecer de analisar a efetiva intenção das partes, ao invés do teor literal do título, poden- do-se reconhecer efeitos em um aval dado fora de um título de crédito. Nesse caso, os efeitos não serão de aval, mas apenas aqueles que se compatibilizem com a intenção da parte.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, (V. 1), 20. Ed rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 415.

[6] Idem, p. 416.

[7] Artigo 32 da Lei Uniforme de Genebra (Decreto nº 57.663/1966): O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. De o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi o dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.

[8] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa, (V. 1), 20. Ed rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 416.

[9] Idem.

[10] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: Títulos de Crédito, (V. 2), 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 125.

[11] Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.

[12] Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.

Art. 826. Se o fiador se tornar insolvente ou incapaz, poderá o credor exigir que seja substituído.

Art. 830. Cada fiador pode fixar no contrato a parte da dívida que toma sob sua responsabilidade, caso em que não será por mais obrigado.

Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor

[13] Art. 235. O marido não pode, sem consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens: (…) III – prestar fiança (arts. 178, § 9º, I, b, e 263, X);

[14] Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I – praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235);

 

[15] STJ – Resp 1163074/PB, Rel Ministro MASSAMI UYEDA, Terceira Turma, julgado em 15/12/2009, DJe 4/2/2010.

[16] TEIXEIRA, Paulo Ricardo Goes. Aval tem validade mesmo sem a autorização do cônjuge. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-mar-10/aval_validade_mesmo_autorizacao_conjuge. Último acesso em 12/02/2017, às 16h38.

[17] Convenção de Genebra de 1931, acessível em http://bo.io.gov.mo/bo/i/60/06/out04.asp.

[18] TEIXEIRA, Paulo Ricardo Goes. Aval tem validade mesmo sem a autorização do cônjuge. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-mar-10/aval_validade_mesmo_autorizacao_conjuge. Último acesso em 12/02/2017, às 16h38.

[19] Idem.

Alienação Fiduciária em Garantia

Postado em Atualizado em

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Alienação Fiduciária em Garantia: Análise crítica das principais espécies e suas particularidades.

 

Giovanny Pereira Pinheiro[1]

Washington Luís Batista Barbosa[2]

 

 

Resumo

Análise crítica, doutrinária e jurisprudencial, das espécies[3] de alienação fiduciária em garantia são tratadas em legislações esparsas (Código Civil, Lei 4.728/1965, Lei 9.514/1997) a depender do bem dado em garantia (móvel fungível e infungível ou imóvel) e com consequências diferentes a depender de cada uma das espécies, o presente estudo abordará algumas peculiaridades de cada uma delas.

 

Abstract

Given that the species of chattel mortgage are treated in sparse laws depending on the asset given as collateral and with different consequences depending on each species, this study address some peculiarities of each.

 

Palavras-chave: Alienação Fiduciária em Garantia – Propriedade Fiduciária – Pacto Comissório – Bens Fungíveis e Infungíveis – Desdobramento da Posse.

 

 

Introdução                                                                

 

O presente estudo fará uma breve análise da evolução legislativa das principais espécies de alienação fiduciária em garantia previstas no direito brasileiro.

 

Em seguida tratará dos bens passíveis de alienação fiduciária em garantia, bem como do desdobramento da posse, que pode ser diferente a depender da espécie de bem objeto da garantia e, por conseguinte, da legislação aplicável.

 

O estudo também tratará, em breves linhas, da proibição do chamado pacto comissório.

 

Por fim, será abordado qual o tratamento dispensado pela legislação quanto ao saldo remanescente do crédito quando da excussão a garantia.

 

O estudo se utilizou de pesquisas legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema proposto.

 

Alienação Fiduciária em Garantia – conceito e evolução legislativa

 

A alienação fiduciária em garantia estabelece uma propriedade resolúvel em nome do credor ficando o devedor, em regra[4], na posse da coisa dada em garantia. Uma vez quitada a obrigação pelo devedor, a propriedade consolida-se em seu nome. Por outro lado, caso inadimplida a obrigação, a lei prevê mecanismos para a satisfação do crédito inadimplido. A esse respeito, confira-se a doutrina de Fábio Ulhoa:

 

Por esse contrato, cujas raízes se encontram no direito romano (Restiffe Neto, 1975:1), o credor (fiduciário) se torna titular da propriedade resolúvel da coisa e seu possuidor indireto, enquanto o devedor (fiduciante) é investido na condição de possuidor direto e depositário (CC, arts. 1.361, § 2º, e 1.363). Cumprida a obrigação que esse tem perante aquele, opera-se a resolução da propriedade: o sujeito que era devedor passa a ser o proprietário pleno e único possuidor da coisa, e o que era credor deixa de titularizar qualquer direito real sobre ela. Não cumprida a obrigação, porém, tem o credor instrumentos ágeis e eficazes para ver satisfeito seu crédito. Sendo o proprietário e possuidor indireto do bem objeto da alienação fiduciária em garantia, o credor pode, nas condições da lei, obter a consolidação da propriedade, vendê-lo e pagar-se com o produto da venda.[5]

 

A introdução da alienação fiduciária em garantia, no direito brasileiro, se deu por meio da Lei nº. 4.728, de 14 de julho de 1965 (“Lei 4.728/1965”)[6], a qual disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Posteriormente, o Decreto-Lei nº. 911, de 1º de outubro de 1969 (“Dec.-Lei 911/1969”)[7] aperfeiçoou a definição e a aplicabilidade do instituto, instituindo, inclusive, a prisão do devedor, por ficção legal ao depositário fiel.

 

Mais tarde essa prisão foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”), com base na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), cuja adesão pelo Brasil se deu em 1992, haja vista o caráter supralegal do referido diploma normativo internacional[8].

 

Referido entendimento culminou na edição da Sumula Vinculante nº. 25 que dispõe que é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Atualmente, portanto, a prisão civil do depositário infiel encontra-se superada nas cortes de justiça de todo o país.

 

Feito esse breve parêntese acerca da atual impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, conclui-se que inicialmente a legislação previa a aplicação da alienação fiduciária tão somente para bens móveis.

 

Após aproximadamente 30 anos, a Lei nº. 9.514, de 20 de novembro de 1997 (“Lei 9.514/1997”)[9] finalmente instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, dispondo em seu artigo 22, que a alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.[10]

 

Referido diploma legal, em seu artigo 17, também elevou a alienação fiduciária de coisa imóvel ao patamar de direito real.

 

Outra importante inovação trazida pela Lei 9.514/1997, foi a desmistificação de quem poderia ser parte nesse contrato. Isso porque, a Lei 4.728/1965 deixava dúvidas acerca do seu campo de aplicação, havendo posicionamentos divergentes na doutrina acerca da aplicação da alienação fiduciária em garantia apenas para as instituições bancárias. Por todos, defendendo a aplicação apenas às instituições bancárias, Flávio Tartuce:

 

Do ponto de vista da incidência das normas, frise-se que todas as leis especiais referentes à propriedade fiduciária de bens móveis, contidas na Lei 4.728/1965 e no Decreto-lei 911/196, são aplicáveis apenas às instituições financeiras e pessoas jurídicas equiparadas, caso das empresas de consórcio, e, portanto, as demais pessoas físicas ou jurídicas não podem celebrar alienação fiduciária em garantia. De qualquer modo, o Código Civil de 2002 possibilita a qualquer pessoa física ou jurídica a celebração de negócio jurídico pelo qual se dá em garantia certo bem móvel e infungível como propriedade fiduciária. Assim, a codificação tem incidência para as alienações fiduciárias de bens móveis celebradas por outras pessoas, que não as instituições financeiras.

(…)

Constata-se que a compreensão do instituto passa por uma interação necessária entre os citados comandos legais, a par da ideia de diálogo das fontes. A respeito dessa integração legislativa, é claro o art. 1.368-A do CC/2002, incluído pela Lei 10.931/2004, ao prever que as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária não previstas pela codificação submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais. Enuncia, ainda, o comando que somente se aplicam as disposições do CC/2002 naquilo que não for incompatível com a legislação especial. Em suma, a codificação privada tem caráter subsidiário em relação à tipologia do instituto.[11]

 

Em sentido contrário, Maria Helena Diniz, Caio Mário da Silva Pereira e José Carlos Moreira Alves, todos citados por Fábio Ulhoa Coelho, defendem a generalização da alienação fiduciária em garantia. Confira-se:

 

Concluindo, a alienação fiduciária em garantia não é um negócio exclusivo de instituição financeira, por não se enquadrar sua estrutura na conceito do art. 17 da LRB. A sua natureza, como a de todo e qualquer contrato de garantia, é meramente instrumental, de negócio-meio. Dessa forma, pode estar associada a qualquer tipo de mútuo, bancário ou não. Em suma, a função econômica da alienação fiduciária em garantia não está abrangida pela atividade de coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, essência da atividade bancária. Em decorrência, pode ser proprietário fiduciário qualquer pessoa física ou jurídica. Confirma-o a circunstância de o Código Civil, ao dispor as normas gerais do instituto (art. 1.368-A), não exigir do credor fiduciário o atendimento à condição de ser uma instituição financeira.[12]

 

Portanto, a Lei 9.514/1997 caminhou bem ao definir seu campo de aplicação de forma categórica, dispondo, em seu artigo 22, parágrafo primeiro, que a alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no Sistema Financeiro Imobiliário (“SFI”).

 

Posteriormente, a Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“Código Civil”)[13], em seus artigos 1.361 e seguintes, incluiu, no campo dos direitos reais, a propriedade fiduciária. Com base nesta propriedade, portanto, é que se constitui o contrato de alienação fiduciária em garantia.

 

Verificadas as principais legislações que tratam do tema, passa-se à avaliação dos bens passíveis de alienação fiduciária, bem como das peculiaridades acerca do desdobramento da posse em cada espécie de alienação fiduciária aqui tratada.

 

 

Dos bens suscetíveis de alienação fiduciária e do desdobramento da posse

 

Preliminarmente, para melhor compreensão do presente capítulo, apresenta-se, em breves linhas, os conceitos de bens fungíveis e infungíveis.

 

Nos termos do artigo 85 do Código Civil, são fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. A contrario sensu, bens infungíveis são aqueles de natureza insubstituível.

 

Pois bem, atualmente, aplica-se a disciplina do Código Civil, de forma supletiva, a todas as demais espécies de propriedade fiduciária naquilo que não for incompatível com o regramento específico, diferentemente do que ocorria anteriormente à edição da Lei 10.931[14], de 2 de agosto de 2004 (“Lei 10.931/2004”), quando as previsões contidas no Código Civil eram aplicáveis apenas aos bens infungíveis. Confira-se:

 

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

(…)

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial(Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004) (Grifou-se)

 

De forma semelhante, até a edição da Lei 10.931/2004[15], que também alterou a Lei 4.728/1965, a alienação fiduciária de coisas fungíveis era questionada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. A atual redação do parágrafo terceiro do artigo 66-B da Lei 4.728/1965, entretanto, resolveu tal impasse. Confira-se:

 

Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)

(…)

  • 3oÉ admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004)

 

Quanto ao desdobramento da posse, observa-se na legislação transcrita acima que, para essa espécie de alienação fiduciária, em regra, a posse, direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária, é atribuída ao credor, salvo disposição em contrário descrita no contrato, diferentemente do que ocorre nas demais espécies tratadas neste estudo, quais sejam: bens infungíveis[16] e bens imóveis[17], hipóteses em que a posse do bem onerado fica, em regra, de posse do devedor.

 

Atualmente, portanto, a legislação permite a alienação fiduciária de bens móveis fungíveis e infungíveis, bem como de bens imóveis sendo que, no primeiro caso (bens fungíveis), em regra, a posse do bem é atribuída ao credor, diferentemente do que ocorre nas duas outras espécies tratadas.

 

 

Proibição do Pacto Comissório;

 

Extrai-se das legislações estudadas que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida por alienação fiduciária, os credores deverão[18] vender a terceiros os bens dados em garantia e aplicar o produto da venda no pagamento do crédito.

 

Isso porque, o artigo 1.365 do Código Civil, aplicável às demais espécies de alienação fiduciária em garantia por força do artigo 1.368-A[19], também do Código Civil, dispõe que é nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento.

 

Assim, em caso de excussão da garantia pelos credores, a lei proíbe o credor de ficar com o bem dado em garantia após sua excussão. Trata-se da proibição do chamado pacto comissório. Confira-se doutrina nesse sentido:

 

A lei proíbe o pacto comissório como cláusula dos contratos instituidores de garantia real. Quer dizer, o credor não pode ficar com a coisa sobre a qual recai a garantia como forma de satisfazer seu crédito, tanto na hipótese de direito real de garantia como na de direito real em garantia (Gomes, 1970:113). Em razão dessa vedação, o titular da garantia tem o ônus de vender a terceiros a coisa onerada, ou pelo menos tentar vendê-la pelo preço atribuído de comum acordo com o outorgante.[20] (Grifou-se)

 

O parágrafo único do artigo 1.365 do Código Civil, entretanto, dispõe que o devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta. A situação acima, portanto, pode ser excepcionalizada caso haja consenso em sentido contrário entre credor e devedor. Fabio Ulhoa prossegue apresentando entendimento convergente com o texto legal:

 

(…) . Veja que, após o vencimento, nada impede o devedor de dar a coisa onerada por direito real de garantia em pagamento da dívida ao credor, se este concordar (CC, art. 1.428, parágrafo único); também não há óbice à entrega ao credor fiduciário, pelo devedor fiduciante, do direito que titula sobre o bem onerado, em dação em pagamento (art. 1.365, parágrafo único). Não há, nesses casos, nenhuma incompatibilidade com a proibição do pacto comissório, porque a dação decorre de ato voluntário das partes, que veem nela a alternativa mais adequada aos seus interesses para extinguir a obrigação garantida.[21]

 

No mesmo sentido é o texto do artigo 26, parágrafo 8º da Lei 9.514/97, que dispõe que: o fiduciante pode, com a anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, dispensados os procedimentos previstos no art. 27.  Referido artigo 27 trata da necessidade de realização de leilões para a alienação do imóvel dado em garantia.

 

Verifica-se, assim, que, em regra, a lei proíbe o credor de ficar com o bem dado em garantia fiduciária, salvo acordo entre as partes nesse sentido.

 

 

Da eventual diferença de crédito após a excussão da garantia

 

Com relação à alienação fiduciária disciplinada pelo Código Civil, a lei é clara ao dispor que quando vendida a coisa, o produto não bastar para o pagamento da dívida e das despesas de cobrança, o devedor continuará obrigado pela diferença (art. 1.366 do Código Civil).

 

Em razão do disposto no artigo 1.368-A[22] do Código Civil, a obrigação do devedor pela diferença do crédito também é aplicável para as alienações fiduciárias em garantia constituídas com base na Lei 4.728/1965.

 

A problemática maior, entretanto, está relacionada à alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, regulada pela Lei 9.514/1997, conforme se verá a seguir.

 

Como visto, a alienação fiduciária regulada pela Lei 9.514/1997 é o negócio jurídico pelo qual o devedor-fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor-fiduciário da propriedade resolúvel de coisa imóvel (art. 22, cabeça, da Lei 9.514/1997).

 

Com o pagamento da dívida resolve-se a propriedade fiduciária do imóvel, mediante o fornecimento, pelo credor-fiduciário, de termo de quitação para cancelamento do registro da propriedade fiduciária junto ao registro de imóveis. A propriedade, assim, volta a ser plena e consolida-se em nome do devedor-fiduciante (art. 25 e §§ da Lei 9.514/1997).

 

Por outro lado, inadimplida a obrigação garantida, o devedor-fiduciante será intimado para purgar a mora[23] no prazo de 15 dias. Purgada a mora, o contrato restabelecer-se-á ficando o devedor obrigado ao pagamento das demais parcelas vincendas, caso haja (art. 26, cabeça, c/c §§1º e 5º da Lei 9.514/1997).

 

Entretanto, decorrido o prazo de 15 dias sem a purgação da mora, a propriedade consolidar-se-á em nome do credor, que terá o prazo de 30 dias para promover um leilão público para a venda do imóvel (art. 26 §7º c/c art. 27, cabeça, da Lei 9.514/1997).

 

Caso no primeiro leilão não haja lance que alcance o valor do imóvel, será realizado um segundo leilão no prazo de 15 dias (art. 27 §1º da Lei 9.514/1997).

 

No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida e seus acessórios, devolvendo-se ao devedor o que sobejar, fato esse que importará em recíproca quitação (art. 27 §§2º a 4º da Lei 9.514/1997).

 

A problemática surge se, no segundo leilão, o maior lance não for igual ou superior ao valor da dívida e seus acessórios, hipótese em que, com base na literalidade do texto legal, a dívida será considerada extinta e o credor exonerado, por óbvio, da obrigação de devolver eventuais diferenças e valores referentes a benfeitorias ao devedor. Nesse caso, ficará o credor obrigado a conceder termo de quitação ao devedor. (art. 27 §§5º e 6º[24] da Lei 9.514/1997).

 

A doutrina e a jurisprudência ainda são vacilantes acerca do assunto, havendo entendimentos que consideram extinta a dívida e outros que defendem que o devedor permaneceria obrigado pela diferença do crédito.

 

Confira-se doutrina de Fabio Ulhoa que, com base na literalidade da lei, apresenta entendimento que a dívida será extinta caso não se obtenha lance no segundo leilão tratado pela Lei 9.514/1997:

 

Em relação à venda do bem objeto da garantia real, estabelece a lei que o imóvel só poderá ser vendido, no primeiro público leilão, se o maior lance for igual ou superior ao valor da coisa indicado em contrato. Não havendo tal lance, realiza-se o segundo público leilão, em que o imóvel será vendido apenas se o maior lance se igualar ou superar o valor do crédito garantido mais as despesas. Se ninguém fizer oferta nesse valor mínimo no segundo público leilão, o fiduciário se desobriga de vender o bem onerado e o fiduciante se exonera da obrigação em atraso (Lei n. 9.514/97, art. 27, § 5º)[25]

 

No mesmo sentido, colaciona-se precedente judicial que considerou a dívida extinta:

 

(…) 2. Contrato discutido que foi firmado sob a égide do sistema financeiro de habitação. SFH, com alienação fiduciária em garantia, sendo regulado pela Lei nº 9.514/97, que instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel. 3. O art. 26, da Lei nº 9.514/97, que disciplina a fase inicial do procedimento de consolidação da propriedade imobiliária em favor do credor fiduciário, dispõe que, uma vez inadimplente e constituído em mora o devedor fiduciante, deve o credor intimá-lo pessoalmente, ou através de representante legal ou procurador regularmente constituído, para purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias, através do competente cartório de registro de imóveis. 4. Purgada a mora, convalescerá o contrato de alienação fiduciária; caso contrário, o oficial do competente registro de imóveis, certificando tal fato, fará a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, comprovado o pagamento do imposto de transmissão inter vivos e, se houver, do laudêmio. 5. Há nos autos uma certidão do registro geral de imóveis do 1º ofício de Paulista/PE, a demonstrar que a fiduciante fora intimada para satisfazer as prestações vencidas e vincendas, não tendo purgado a mora, expediente que foi realizado com a observância das regras procedimentais de caráter formal, donde se denota a higidez do procedimento de consolidação da propriedade fiduciária pela CEF. 6. Ainda em observância ao regime legal, a caixa promoveu a realização de dois leilões para a alienação do imóvel, porém, não foi recebido lance para arrematação, o que culminou com a extinção da dívida, nos termos do § 5º, do art. 27, da Lei nº 9.514/97. Assim, observadas as exigências legais, merece acolhida a pretensão de imissão na posse. (…)[26] (Grifou-se)

 

Em sentido diverso é a decisão monocrática do Ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), que manteve a decisão do tribunal de origem que entendeu pela inaplicabilidade do Art. 27, §5º da Lei 9.514/1997 e pelo prosseguimento da execução, uma vez que o valor do bem imóvel dado em garantia fiduciária, obtido no segundo leilão, era insuficiente para quitar integralmente o débito. Registre-se que no caso deste precedente judicial, o gravame constituído se deu em garantia parcial da dívida, não tendo ainda a dívida sido contraída para a aquisição do bem excutido:

 

(…) EXECUÇÃO GARANTIDA POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Imóvel oferecido em garantia fiduciária, cujo valor é inferior ao do crédito perseguido pelo exequente – Considerando que o valor do imóvel ofertado em garantia fiduciária é insuficiente para quitação integral da dívida, a execução, em tese, pode prosseguir visando à satisfação do saldo devedor remanescente, ressalvada a reapreciação desta controvérsia em caso de eventuais embargos – Decisão mantida.

(…) O Tribunal de origem entendeu que o preço obtido pelo imóvel dado em garantia não serviria para quitar integralmente a dívida (afastando, portanto, o art. 27, § 5º, da Lei n. 9.514/1997) tendo em vista as características do contrato. Assinalou, em primeiro lugar, que a dívida não foi contraída para aquisição do bem excutido. Além disso, o gravame constituído se deu expressamente como garantia parcial da dívida. Finalmente, haveria previsão contratual expressa (cláusula 20) de que a execução das garantias ofertadas não elidiria, restringiria ou eliminaria o direito de crédito do banco.[27]

 

Com o propósito de pôr fim às diferentes interpretações mencionadas acima acerca da extinção da dívida, registre-se que tramita projeto de lei[28] que pretende incluir novo parágrafo no artigo 27 da Lei 9.514/97 com a seguinte redação:

 

  • 9º A extinção da dívida e a exoneração do devedor da respectiva obrigação, previstas nos §§ 4º e 5º deste artigo, aplicam-se tão somente às operações de financiamento imobiliário, não se estendendo, em hipótese alguma, a qualquer outra modalidade de financiamento na qual se utilize contratualmente da alienação fiduciária em garantia”. (Grifou-se)

 

Observa-se, assim, que a tendência dos tribunais já é a de adotar o entendimento que o projeto de lei pretende emplacar, conforme decisão do STJ mencionada anteriormente.

 

Com relação à aplicação do artigo 53[29] da Lei nº. 8.078, 11 de setembro de 1990 (“Código de Defesa do Consumidor” ou “CDC”), que dispõe que nas alienações fiduciárias em garantia de bens imóveis, consideram-se nulas as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a retomada do bem alienado, o entendimento que prevalece é o de que se aplica a Lei 9.514/1997, seja pela especialidade, seja porque é posterior ao CDC. Confira-se precedente do STJ nesse sentido:

 

(…) No caso, o decisório firmou que tratando-se de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária não se aplica o código consumerista, pois prevalece a incidência da normação especial contida na Lei n. 9.514/1997 posterior ao CDC, naquilo que diz respeito às consequências do inadimplemento do devedor. Os agravantes, entretanto, limitaram-se a afirmar que nos termos do CDC teriam direito à devolução das prestações pagas com retenção, em favor do agravado de 20% valor. Incide, no caso, o verbete da Súmula 182/STJ. 2. Agravo regimental não-provido.[30] (Grifou-se)

 

Verifica-se, portanto, que para as alienações fiduciárias constituídas com base na Lei 4.728/1965 e no Código Civil, a lei é clara ao dispor que o devedor permanecerá obrigado pela diferença de crédito, caso a excussão da garantia não seja suficiente. Com relação à alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, entretanto, a doutrina e a jurisprudência ainda são vacilantes a esse respeito, sendo certo que há projeto de lei em andamento cujo objetivo é acabar com essa margem de interpretação.

 

Conclusão

 

Atualmente, a legislação permite a alienação fiduciária em garantia tanto de bens móveis fungíveis e infungíveis, quanto de bens imóveis, assim como que a regra de desdobramento da posse pode variar a depender do bem dado em garantia e da legislação aplicável.

 

Outro ponto que merece destaque é a proibição do pacto comissório, sem prejuízo de o devedor dar em pagamento o bem objeto da garantia, caso haja consenso entre as partes.

 

Quanto ao eventual saldo residual após a excussão da garantia, conclui-se que: (a) a Lei 4.728/1965 e o Código Civil são claros ao disporem que o devedor permanecerá obrigado pela diferença que sobejar o valor do bem dado em garantia; e (b) a Lei 9.514/1997 dispõe que após o procedimento administrativo previsto poderá haver extinção do débito, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência divergem a esse respeito e há projeto de lei em tramitação que busca dar maior clareza nessa interpretação e cujo entendimento nos parece o mais acertado.

 

Fica claro que o instituto tem passado por um processo de evolução, perpassando, principalmente pelo incremento de sua utilização nos diversos contratos. Num primeiro momento, sem limitações e chegando à máxime da constrição total do bem como meio de impor uma penalidade ao devedor. Hoje, de maneira mais adequada, com a expropriação sendo utilizada como forma de adimplemento da dívida que garantia.

A doutrina e a jurisprudência tem moderado a utilização da alienação fiduciária em garantia, interpretando a lei à luz dos princípios constitucionais, civis, empresariais e consumeristas, o que trará, como consequência direta, a ampliação da utilização instituto no dia a dia das transações nacionais.

 

Referências

 

Lei nº. 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7565.htm

 

Lei nº. 4.728, de 14 de julho de 1965. Disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm

 

Decreto-Lei nº. 911, de 1º de outubro de 1969.
Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sôbre alienação fiduciária e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0911.htm

 

Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm

 

Lei nº. 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm

 

Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm

 

Lei nº. 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm

 

Projeto de Lei nº. 6.525, apresentado em 8/10/2013 pelo Deputado Carlos Bezerra (PMDB/MT). Altera a Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, que “Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências”, para fins de disciplinar o tratamento da alienação fiduciária em garantia. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=595526

 

Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível 0002211-13.2010.4.05.8300; PE; Terceira Turma; Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano; DEJF 01/03/2013; Pág. 430.

 

Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. nº 818.237 – SP (2015/0298116-0). Decisão monocrática Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgamento: 02 fev. 2016, Publicação: Diário da Justiça: 17/2/2016.

 

Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo Regimenta no Agravo de Instrumento nº. 932.750 – SP (2007/0179976-4) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data do julgamento: 25/5/2010.

 

Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009.

 

Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

 

Tartuce, Flávio – Direito civil, v. 4 : direito das coisas / Flávio Tartuce. – 6. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

[1] Advogado. Graduado em direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela ATAME. Pós-Graduado no curso LL.M. Direito Empresarial pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC. Atualmente atua no consultivo de uma Entidade Fechada de Previdência Complementar. (giovanny.pinheiro@gmail.com).

 

[2] Professor Orientador. Mestrando Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, especialista em Direito Público e em Direito do Trabalho, MBA Marketing e MBA Formação para Altos Executivos. Coordenador dos Cursos Jurídicos do IBMEC-DF, professor titular das disciplinas nas áreas de Direito Empresarial, Direito Econômico e Direito Previdenciário nos cursos de Pós-graduação e LL.M, Master of Laws. Desempenhou várias funções na carreira pública e privada, dentre as quais: Assessoria Jurídica da Diretoria Geral e Assessoria Técnica da Secretaria Geral da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, Diretor Fiscal da Procuradoria Geral do Governo do Distrito Federal, Cargos de Alta Administração no Conglomerado Banco do Brasil. Editor dos blogs www.washingtonbarbosa.com, www.twitter.com/wbbarbosa, e www.facebook.com/professorwashingtonbarbosa. (w.luis.barbosa@gmail.com).

 

[3] Registre-se que o presente estudo não abordará todas as legislações que tratam do tema como, por exemplo, a alienação fiduciária em garantia prevista na Lei nº. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (“Código Brasileiro de Aeronáutica”). Serão tratados, portanto, somente as consideradas principais na visão do autor.

 

[4] Pelo regramento constante do parágrafo terceiro do artigo 66-B da Lei 4.728, de 14 de julho de 1965 (“Lei 4.728/1965”), a posse direta e indireta do bem fica, em regra, em posse do credor, conforme se verá adiante.

 

[5] Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

 

[6] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm

 

[7] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0911.htm

 

[8] RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009.

 

[9] Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm

 

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm

 

[11] Tartuce, Flávio – Direito civil, v. 4 : direito das coisas / Flávio Tartuce. – 6. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

 

[12] Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

 

[13] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm

 

[14] Incluiu novas disposições no Código Civil acerca da propriedade fiduciária e da propriedade fiduciária em garantia. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/Lei/L13043.htm

 

[15] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm

[16] Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

(…)

  • 2oCom a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa. (Grifou-se)

 

[17] Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. (Grifou-se)

 

[18] Apesar de o parágrafo terceiro do artigo 66-B da Lei 4.728/65 trazer o termo “poderão”.

 

[19] Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

 

[20] Coelho, Fábio Ulhoa – Curso de direito civil, volume 4 : direito das coisas, direito autoral / Fábio Ulhoa Coelho. — 4. ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

 

[21] Coelho, Fábio Ulhoa – Ob. cit.

 

[22] Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

[23] Nos termos do artigo 26, §1º da Lei 9.514/1997, é a satisfação, no prazo de quinze dias, da prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

 

[24] Art. 27. (…)

  • 5º Se, no segundo leilão, o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor referido no § 2º, considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º.
  • 6º Na hipótese de que trata o parágrafo anterior, o credor, no prazo de cinco dias a contar da data do segundo leilão, dará ao devedor quitação da dívida, mediante termo próprio.

 

[25] Coelho, Fábio Ulhoa – Ob. cit.

 

[26] TRF 5ª R.; AC 0002211-13.2010.4.05.8300; PE; Terceira Turma; Rel. Des. Fed. Geraldo Apoliano; DEJF 01/03/2013; Pág. 430.

 

[27] STJ. Recurso Especial n. nº 818.237 – SP (2015/0298116-0). Decisão monocrática Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgamento: 02 fev. 2016, Publicação: DJ 17 fev. 2016. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/decisoes/doc.jsp?livre=2015%2F02981160&b=DTXT&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=1. Acesso em: outubro 2016.

 

[28] Projeto de Lei nº. 6.525, de 2013, proposto pelo Deputado Carlos Bezerra.

 

[29] Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

 

[30] STJ. AgRg nos EDcl no AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 932.750 – SP (2007/0179976-4) RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO. Data do julgamento: 25/5/2010.

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A família não pode se eximir de sua responsabilidade de educar seus filhos

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Muito se fala acerca da necessidade de se normatizar a publicidade direcionada às crianças, com base em argumentos de hipossuficiência, deficiência de julgamento, sem falar no dever do Estado de salvaguardar a criança de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF).

Existe, inclusive, um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional desde 2001 (Projeto de Lei nº 5.921/2001, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly – PSDB-PR), que pretende coibir a publicidade destinada a promover a venda de produtos destinados apenas às crianças. Ainda, e em plena vigência, as restrições constantes do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, do Conar e do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).

O presente ensaio trará uma visão sobre o tema publicidade infantil sob a ótica dos princípios da liberdade econômica, da liberdade de expressão e da responsabilidade da família pela criação de seus filhos.

 

DA LIVRE INICIATIVA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA

 

A Constituição Federal estabelece, em seu Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e observador os seguintes princípios:

[…]

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor

[…]

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

É límpido, concordemos ou não, que o constituinte estabeleceu o regime da livre iniciativa e da não intervenção do Estado na atividade econômica. Mais do que isto, restringiu sobremaneira a possibilidade de intervenção direta do Estado, limitando a sua atuação aos aspectos de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este meramente indicativo para o setor privado.

No modelo econômico capitalista, baseado na legitimidade dos bens privados e na liberdade de comércio, da indústria e dos serviços, adotado em nosso Brasil, temos de correr os riscos e as consequências dessas opções econômica, social e cultural.

Não se pode fugir dessas premissas. Vivemos em uma sociedade de consumo, em meio a um regime capitalista em que o Estado deve assumir papel coadjuvante no mundo econômico. Mais do que isso, deve-se buscar a autorregulamentação do mercado, cabendo ao Estado o papel essencial da fiscalização.

 

DA LIBERDADE DA COMUNICAÇÃO SOCIAL

 

Na mesma linha, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu Capítulo V, Da Comunicação Social, no art.220 estabelece que:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observando o disposto nesta Constituição.

Ao estabelecer limites à propaganda comercial o constituinte somente excepcionou os produtos, as práticas e os serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente, o tabaco, as bebidas alcoólicas, os agrotóxicos, os medicamentos e as terapias. Não proibiu a veiculação de anúncios dessa natureza, mas tão somente dispôs sobre a obrigatoriedade de haver advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso (art. 220, §§ 3º e 4º, CF/88).

Mais uma vez, e como não poderia ser diferente ante os princípios da ordem econômica, a Lei Maior do Brasil estabeleceu a liberdade de iniciativa e baniu qualquer tipo de censura. Destaca-se que, no caso da comunicação social, não se pode dar interpretação extensiva às limitações impostas ao legislador ordinário. Deve-se ater somente aos temas listados em razão de serem termos numerus clausus.

 

DA RESPONSABILIDADE DA FAMÍLIA PELA EDUCAÇÃO DE SEUS FILHOS

 

Pode-se dizer que aqui se encontra o grande dilema desse estudo. Estabelecer limitações entre a responsabilidade da família em relação à educação de seus filhos e o dever do Estado de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e às convivências familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (dever esse compartilhado com a família e a sociedade, nos termos do art. 227, da CF/88).

Mais uma vez, de maneira salutar e não intervencionista, o Poder Constituinte de 1988 deixou expresso que a família é a base da sociedade e que deve contar com especial proteção do Estado (art. 226, CF/88).

Voltando ao nosso modelo socioeconômico capitalista, o Estado somente tem o poder de fiscalizar, de incentivar e, nos casos da educação e da saúde, assegurar os direitos e as garantias. Mas deve privar-se de substituir o poder familiar e a responsabilidade da família de educar os seus filhos.

Não nos referimos aqui à educação formal, mas sim ao seu mais amplo sentido de um processo evolutivo que inclui questões de naturezas intelectual, emocional e social, sem falar numa série de habilidades e de valores.

A família não pode colocar na mão de outros, quer entes sejam entes privados e muito menos o Estado, a sua responsabilidade de educar. Trata-se de obrigação primária da família passar valores, impor limites, dar afeto, utilizar responsavelmente a autoridade.

Nesse sentido, a ponderada decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da 5ª Câmara de Direito Público, ao julgar a Apelação Cível 0018234-17.2013.8.26.0053, publicada em 30/06/2015, da lavra do desembargador Fermino Magnani Filho, trouxe a seguinte decisão:

Não deve o Estado, de modo paternalista, sobrepor-se às obrigações primárias da família, sobretudo quando incitado pelo barulho muito atual, mas com um quê autoritário, da militância ‘ongueira’, sob pena do esgarçamento da legitimidade de seus atos de império

Permita-me o douto desembargador, com todo o respeito e com a máxima venia, somente discordar da expressão “militância ‘ongueira’”.

As organizações não governamentais, pelo menos parte delas, desenvolvem papel importante na defesa das políticas que asseguram a proteção à família estatuída na Constituição Federal.

Ressalva à parte, alinho-me fielmente ao repúdio às tentativas de o Estado se sobrepor às obrigações primárias da família.

 

PROJETO DE LEI nº 5.921/2001

 

O Projeto de Lei 5.591/2001, cuja ementa transcrevo, acrescenta um paragrafoao art. 37 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, que  “dispõe sobre a proteção do consumidor.

A proposta sugere a proibição de publicidade destinada a promover a venda de produtos infantis, assim considerados aqueles destinados apenas à criança.

Além disso, foi apresentado substitutivo a esse Projeto de Lei perante à Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara Federal, da lavra da deputada Maria do Carmo Lara, que, em apertada síntese, propõe a edição de lei específica, dispondo sobre a publicidade de produtos e serviços direcionados ao público infantojuvenil.

Após uma série de justificativas sobre a necessidade de criação de lei específica sobre o tema e descartando a mera inclusão de um parágrafo no art. 37 do Código de Defesa do Consumidor, a ilustre deputada federal propõs uma série de princípios, de proibições, além de tipificar condutas e estabelecer penalidades.

Muito embora o longo tempo de tramitação, 15 anos, tanto o Projeto de Lei quanto o substitutivo proposto continuam sem encaminhamento conclusivo, como tantos outros que dormem nos escaninhos do Congresso Nacional.

 

A REGULAMENTAÇÃO DA PUBLICIDADE INFANTIL NO BRASIL E NO MUNDO

 

No ordenamento jurídico nacional, além dos preceitos já citados da Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor, no art. 37, § 2º, ao falar da proibição da publicidade enganosa ou abusiva, estabelece que:

  • 2º É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança.

Do ponto de vista infralegal, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, e Código de Ética, trazem uma série de normas limitadoras ao uso da imagem de crianças, assim como ao conteúdo e à forma de comunicar o produto e/ou serviço.

Tem-se notícia de várias referências legislativas em países como Alemanha, Espanha, Reino Unido, Suécia, Bélgica, Holanda, Grécia, Noruega, Áustria, Portugal, Estados Unidos, Canadá, Chile, além da Comunidade Europeia e alguns códigos da Câmara Internacional do Comércio – ICC.

O que se depreende desses textos legais é que, em sua grande maioria, atêm-se a princípios e a normas gerais, mas não se tem conhecimento de nenhuma proibição expressa à publicidade infantil.

 

PUBLICIDADE DESTINADA AO PÚBLICO INFANTIL

 

Superada essa primeira fase de contextualização, faz-se necessário distinguir o escopo do presente ensaio.

O cerne da discussão repousa na possibilidade de o Estado limitar ou, até mesmo, proibir a publicidade de produtos destinados somente ao público infantil. A razão central para essa proibição fundamenta-se no dever do Estado de proteger o infante da sanha cruel da indústria de consumo.

Primeiramente, há de se destacar que, na sociedade atual, estamos todos submetidos a uma série de incentivos ao consumo. São diversas peças publicitárias, mídias, meios de comunicação, sem falar nas técnicas de veiculação de mensagens subliminares, quer por meio de filmes e novelas, quer por meio da cobertura que a imprensa faz das “celebridades” do momento.

O poder sugestivo da forma de vida (the way of life) tenta definir desde de nossa forma de vestir, de nossa maneira de se relacionar, até mesmo a nossa linha de pensamento. Deparamo-nos com isso a cada momento, no ambiente de trabalho, dentro das escolas, nos centros religiosos, nos clubes e associações recreativas, na capital e no interior.

Atualmente, principalmente levados pelo crescimento do acesso à internet, aos smart phones, às redes sociais, aos diversos canais de TV por assinatura, muitos conteúdos são produzidos de maneira global e distribuídos de forma livre e sem censura.

Como controlar a produção dos diversos canais de TV por assinatura?

Como controlar a imensidão de sites de conteúdo e a publicidade neles veiculada?

É claro que a proposta de proibição de publicidade de produtos destinados somente às crianças pelo Estado brasileiro, além de absurda, seria inócua. Como muitas das ações legislativas, seria mais uma das chamadas “leis para inglês ver”, mais uma ação midiática.

Na realidade, já existem vários processos tramitando pelos diversos órgãos do Poder Judiciário que requerem o pagamento de indenizações contra a chamada “publicidade abusiva” veiculado por anunciantes de produtos e/ou serviços destinados ao público infantil.

Nesse sentido, o Poder Judiciário tergiversa entre decisões duríssimas de lado a lado, às vezes punindo o anunciante, outras eximindo-o de responsabilidade.

Um ponto é de relativo consenso, a posição contrária e rigorosa contra a venda casada de produtos, travestida de ação promocional ou de fidelização, como a transcrita a seguir:

PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. PUBLICIDADE DE ALIMENTOS DIRIGIDA À CRIANÇA. ABUSIVIDADE. VENDA CASADA CARACTERIZADA. ARTS. 37, § 2º, E 39, I, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. 1. Não prospera a alegada violação do art. 535 do Código de Processo Civil, uma vez que deficiente sua fundamentação. Assim, aplica-se ao caso, mutatis mutandis, o disposto na Súmula 284/STF. 2. A hipótese dos autos caracteriza publicidade duplamente abusiva. Primeiro, por se tratar de anúncio ou promoção de venda de alimentos direcionada, direta ou indiretamente, às crianças. Segundo, pela evidente “venda casada”, ilícita em negócio jurídico entre adultos e, com maior razão, em contexto de marketing que utiliza ou manipula o universo lúdico infantil (art. 39, I, do CDC). 3. In casu, está configurada a venda casada, uma vez que, para adquirir/comprar o relógio, seria necessário que o consumidor comprasse também 5 (cinco) produtos da linha “Gulosos”. Recurso especial improvido.  (RESP 1.558.086-SP, Relator Ministro Humberto Martins, data do julgamento 10 de março de 2016)

Ao analisar as razões e os fundamentos que embasaram o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, percebe-se que as questões relacionadas à publicidade de produtos destinados às crianças é tratada de maneira tangencial, sendo o ponto central da fundamentação a impossibilidade de se comprar o produto, no caso um relógio, sem a precedente aquisição de cinco outros produtos da linha, configurando a venda casada.

No que diz respeito à venda casada de produtos e/ou serviços, aqui analisado de maneira geral e sem pensar especificamente para os destinados somente ás crianças, a restrição é expressa no ordenamento jurídico nacional, sendo pacifica a posição jurisprudencial sobre o tema.

 

A RESPONSABILIDADE DA FAMÍLIA

 

Na realidade, o que se vê claramente é que o Estado não pode se imiscuir em tema que está na esfera do poder e da responsabilidade das famílias.

A uma, pela completa impossibilidade de o Estado coibir a imensa quantidade de veículos que têm a possibilidade de veicular anúncios para esse público. Sem falar que se trata de uma intromissão proibida pela nossa Constituição Federal – Da Liberdade de Comunicação Social.

A duas, mesmo que houvesse condições tecnológicas para se coibir o acesso a esse tipo de comunicação, não haveria como restringir a influência das “celebridades” do momento, muito menos as mensagens subliminares que são veiculadas pelos canais de comunicação social, imprensa, televisão, internet, redes sociais.

O ponto central è que o único “poder” que tem condições de trabalhar esses aspectos é a base da sociedade: a família.

Somente cabe aos pais e/ou aos responsáveis legais o poder-dever de dar educação aos filhos, de estabelecer limites, de conscientizá-los sobre os apelos consumistas da mídia, de esclarecer sobre a influência que eventuais mensagens podem ter sobre o bem-estar social, físico e mental dos filhos.

Um “não” dito de maneira certa e na hora certa tem um papel muito mais importante do que um ato normativo ou mesmo uma decisão judicial, quando nos referimos à criação e à educação dos filhos.

 

CONCLUSÃO

 

Desta forma, considerando os pontos levantados, ressaltamos:

 

  1. não resta dúvida alguma de que o constituinte estabeleceu o regime de livre concorrência e de não intervenção do Estado na atividade econômica;
  2. na mesma linha, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu Capítulo V, Da Comunicação Social, em seu artigo 220, estabeleceu a liberdade de pensamento, criação, manifestação e informação de qualquer forma, sendo bastante limitado naquilo que poderia sofrer algum tipo de restrição;
  3. ao estabelecer limites à propagando comercial, o constituinte somente excepcionou os produtos, as práticas e os serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente, o tabaco, as bebidas alcoólicas, os agrotóxicos, os medicamentos e as terapias. Mais do que isto, não proibiu a veiculação de anúncios dessa natureza, mas tão somente determinou a obrigatoriedade de haver “advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso” (art. 220, §§ 3º e 4º, CF/88);
  4. de maneira salutar e não intervencionista, o Poder Constituinte de 1988 deixou expresso que a família é a base da sociedade e que deve contar com especial proteção do Estado (art. 226, da CF/88);
  5. a família não pode colocar na mão de outros, quer seja de entes privados e muito menos do Estado, a sua responsabilidade de educar. Trata-se de obrigação primária da família passar valores, impor limites, dar afeto, utilizar responsavelmente a autoridade;
  6. ao analisar os normativos publicados pelas diversas nações espalhadas pelo mundo, em sua grande maioria, atêm-se a princípios e a normas gerais, mas não se tem conhecimento de proibição alguma expressa à publicidade infantil.
  7. uma proibição legal que restringe-se à publicidade destinada somente ao público infantil não teria efeitos práticos pela impossibilidade de garantir a sua aplicação, ou mesmo de se controlar todos os diversos meios pelos quais ela pode ser veiculada; e
  8. o Estado não pode se imiscuir em tema que está na esfera do poder e da responsabilidade das famílias.

 

De outro lado, não se pode eximir a responsabilidade do Estado e da sociedade no que diz respeito à proteção das crianças e adolescentes, ao contrário. Não obstante, esses papéis devem ser exercidos por meio de programas de esclarecimento e de conscientização, sem falar do poder de fiscalização e de coibir abusos porventura perpetrados.

Ademais, não se poderia deixar a formação de desejos de consumo das crianças somente nas mãos do poder econômico, já que não se pode permitir que suas mentes imaturas sejam bombardeadas pelos apelos consumistas. Não se pode permitir a criação de verdadeiras batalhas entre as vontades dos infantes e as limitações econômico-financeiras das famílias.

Não obstante, uma lei para proibir a veiculação de publicidade exclusivamente destinada às crianças não é o caminho. Um Estado intervencionista, autoritário e limitador não tem lugar no Estado Democrático de Direito.

Aqui está a responsabilidade da sociedade, que deve se mobilizar para regular, defender e se contrapor a possíveis excessos. A importância do Conar, das organizações não governamentais de defesa das crianças e dos adolescentes, das associações de pais e mestres, dos conselhos tutelares, enfim, da sociedade organizada, que deve se mobilizar para assegurar o equilíbrio entre essas forças aparentemente opostas.

Finalmente, há de se deixar claro a responsabilidade da família, célula base da sociedade, na criação e na educação dos filhos, na atribuição de limites e na apresentação de exemplos. Nesse sentido, o Ministério Público, as políticas de educação, os diversos órgãos reguladores e a sociedade organizada deverão ser “as mãos” do Estado Democrático de Direito para assegurar condições para a garantia do desempenho da missão educadora da família.

 

* WASHINGTON LUÍS BATISTA BARBOSA é mestrando Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, especialista em Direito Público e em Direito do Trabalho, MBA Marketing e MBA Formação para Altos Executivos.

Coordenador dos Cursos Jurídicos do IBMEC-DF, professor titular das disciplinas nas áreas de Direito Empresarial, Direito Econômico e Direito Previdenciário nos cursos de Pós-graduação e LL.M, Master of Laws.

Desempenhou várias funções na carreira pública e privada, dentre as quais: Assessoria Jurídica da Diretoria Geral e Assessoria Técnica da Secretaria Geral da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, Diretor Fiscal da Procuradoria Geral do Governo do Distrito Federal, Cargos de Alta Administração no Conglomerado Banco do Brasil.

Editor dos blogs www.washingtonbarbosa.com, www.twitter.com/wbbarbosa, e www.facebook.com/professorwashingtonbarbosa.

Autor de vários artigos publicados em revistas especializadas.